Quem está a escrever o Futuro? http://www.bahai.pt/docu/quemestaesc.html, ainda copiando e colando leituras maravilhosas

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Reflexões Sobre o Século Vinte
Em 28 de Maio de 1992, a Câmara de Deputados do Brasil reuniu, em sessão solene, para comemorar o centenário da ascensão de Bahá’u’lláh, cuja influência se está a tornar, cada vez mais, uma característica cada vez mais familiar da paisagem social e intelectual do mundo. A sua mensagem de unidade tocou num ponto sensível dos legisladores brasileiros. No decurso dos trabalhos, oradores de todos os partidos representados na Assembleia Legislativa prestaram tributo a uma colectânea de escritos que um deputado descreveu como "o trabalho religioso mais colossal escrito pela mão de um único Homem", e a uma concepção do futuro do nosso planeta que, "transcendendo fronteiras materiais", nas palavras de um outro, "se dirigiu à humanidade como um todo, sem diferenças mesquinhas de nacionalidade, raça, limites ou crenças." 1

O tributo foi ainda mais marcante devido ao facto de, no seu país de origem, o trabalho de Bahá’u’lláh continuar a ser amargamente condenado pelo clero Muçulmano que governa o Irão. Os seus antecessores tinham sido responsáveis pela sua deportação e aprisionamento em meados do séc. XIX, e pelo massacre de milhares daqueles que partilhavam os seus ideais para a transformação da vida humana e da sociedade. Mesmo durante o decorrer dos trabalhos em Brasília, a recusa em negar crenças, que ganhou grandes elogios na maior parte do resto do mundo, fazia dos 300.000 Bahá’ís que viviam no Irão alvos de perseguição, privação e, em inúmeros casos, captura e morte.

Uma oposição semelhante caracterizou as atitudes dos vários regimes totalitários durante o século passado.

Qual a natureza da estrutura de pensamento que fez despertar reacções tão agudamente divergentes?


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I

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A trave-mestra da mensagem de Bahá’u’lláh consiste em expor a realidade como sendo, fundamentalmente, de natureza espiritual, e as leis que governam o operar dessa realidade. Não só vê o indivíduo como um ser espiritual, "uma alma racional", mas também insiste que todo o empreendimento, a que nós chamamos civilização, é, em si mesmo, um processo espiritual, no qual a mente e o coração do homem criaram progressivamente meios mais complexos e eficientes de exprimir as suas capacidades morais e intelectuais.

Rejeitando os dogmas vigentes do materialismo, Bahá’u’lláh apresenta uma interpretação oposta do processo histórico. A humanidade, ponta de lança de evolução da consciência, passa por estádios análogos aos períodos da infância e da adolescência nas vidas dos seus membros individuais. A viagem transportou-nos até ao limiar da vinda tão desejada da nossa maturidade como raça humana unificada. As guerras, a exploração e o preconceito, que marcaram estádios de imaturidade no processo, não deveriam ser causa de desespero, mas sim um estímulo para assumir as responsabilidades da maturidade colectiva.

Escrevendo a líderes políticos e religiosos do seu tempo, Bahá’u’lláh afirmou que novas capacidades de incalculável poder – para além daquilo que a geração de então podia conceber – estavam a despertar nas pessoas, capacidades essas que, em breve, transformariam a vida material do planeta. Era essencial, disse ele, fazer destas vantagens materiais emergentes veículos de desenvolvimento moral e social. Se conflitos nacionalistas e sectários impedissem isto de acontecer, então o progresso material produziria não só benefícios, mas também males inimagináveis. Alguns dos avisos de Bahá’u’lláh despertam ecos severos na nossa era: "Coisas estranhas e espantosas existem na terra," preveniu ele. "Estas coisas têm capacidade para mudar toda a atmosfera da terra e a sua contaminação provará ser letal." 2


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II

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A questão espiritual central que todos os povos enfrentam, diz Bahá’u’lláh, qualquer que seja a sua nação, religião ou origem étnica, é a do estabelecimento das fundações de uma sociedade global que reflicta a unidade da natureza humana. A unificação dos habitantes da terra não é nem uma remota visão utópica, nem, em última análise, uma questão de escolha. Constitui o próximo, inevitável estádio, para o qual toda a experiência do passado e do presente nos impele. Até esta questão ser reconhecida e tratada, nenhum dos males que afligem o nosso planeta encontrará soluções, porque todos os desafios da era em que nós entrámos são globais e universais, e não particulares ou regionais.

Muitas das passagens dos escritos de Bahá’u’lláh, que tratam da maturidade da humanidade, estão impregnadas pelo seu uso da luz como uma metáfora para apreender o poder transformador da unidade: "Tão poderosa é a luz da unidade", insistem, "que pode iluminar toda a terra." 3 A afirmação coloca a história corrente numa perspectiva agudamente diferente daquela que prevalece no final do séc. XX. Urge-nos a encontrar – dentro do sofrimento e apatia dos nossos tempos – a operação de forças que estão a libertar a consciência humana para um novo estádio na sua evolução. Convida-nos a reexaminar o que tem estado a acontecer durante os últimos cem anos, bem como o efeito que estes desenvolvimentos tiveram na massa heterogénea de povos, raças, nações e comunidades que os experimentaram.

Se, tal como Bahá’u’lláh afirma "o bem-estar da humanidade, sua paz e segurança são irrealizáveis, a não ser que, primeiro, se estabeleça firmemente a sua unidade" 4, é compreensível porque é que os Bahá’ís vêem o séc. XX – com todos os seus desastres – como "o século da luz." 5 Estes cem anos testemunharam uma transformação, tanto no modo como os habitantes da terra começaram a planear o seu futuro colectivo, como no modo em que nós começamos a olharmo-nos mutuamente. O cunho de ambos tem sido um processo de unificação. Convulsões, que escaparam ao controlo das instituições existentes, obrigaram os líderes mundiais a implementar novos sistemas de organização mundial, que seriam impensáveis no início do século. Enquanto isto ocorria, uma rápida erosão ultrapassava hábitos e atitudes que tinham dividido povos e nações durante séculos incontáveis de conflito, e que parecia que iriam subsistir durante eras vindouras.

Em meados do século, estes dois desenvolvimentos produziram uma brecha, cujo significado histórico apenas as gerações futuras apreciarão devidamente. Em consequência do choque da Segunda Guerra Mundial, líderes de visão ampla acharam, finalmente, possível, através da organização das Nações Unidas, começar a consolidar os fundamentos de uma ordem mundial. Há muito sonhado por pensadores progressistas, o novo sistema de convenções internacionais, e de agências a elas ligadas, era agora dotado de poderes cruciais, que tinham sido tragicamente negados à abortiva Liga das Nações. Com o avançar do século, os músculos primitivos do sistema de manutenção internacional da paz foram de tal forma progressivamente exercitados que demonstraram, de modo persuasivo, o que podia ser atingido. Com isto, veio a rápida expansão das instituições de governação democrática por todo o mundo. Se os efeitos práticos ainda nos desiludem, isto de modo algum diminui a mudança histórica e irreversível de direcção, que teve lugar na organização dos assuntos humanos.

Tal como com a causa da ordem mundial, assim também com os direitos dos povos do mundo. A divulgação do sofrimento aterrorizador, visível nas vítimas da perversidade humana durante o decorrer da guerra, provocaram uma onda de choque a nível mundial – e o que pode apenas ser designado como um profundo sentimento de vergonha. Deste trauma, emergiu uma nova espécie de compromisso moral que foi formalmente institucionalizado no trabalho da Comissão das Nações Unidas para os Direitos Humanos e das suas agências associadas, desenvolvimento inconcebível para os governantes do séc. XIX, a quem Bahá’u’lláh se tinha dirigido sobre este assunto. Assim fortalecido com este poder, um corpo crescente de organizações não governamentais empenhou-se em assegurar que a Declaração Universal dos Direitos do Homem seja estabelecida como base dos padrões normativos internacionais e seja consequentemente implementada.

Um processo paralelo teve lugar no que respeita à vida económica. Durante a primeira metade do século, em consequência da devastação provocada pela grande depressão, muitos governos adoptaram legislação que criou programas de assistência social e sistemas de controlo financeiro, fundos de reserva e regras comerciais que visavam proteger as suas sociedades de um repercutir de tal devastação. O período seguinte à Segunda Guerra Mundial trouxe o estabelecimento de instituições cujo campo de operação é global: o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial, o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio e uma rede de agências de desenvolvimento, dedicadas a racionalizar e promover a prosperidade material do planeta. No final do século – quaisquer que sejam as intenções e apesar do carácter rudimentar da presente geração de meios – as massas da humanidade têm visto que o uso da riqueza do planeta pode ser fundamentalmente reorganizado em resposta a concepções de carência inteiramente novas.

O efeito destes progressos foi enormemente ampliado pela acelerada extensão da educação às massas. Para além da vontade dos governos nacionais e locais de atribuir a esta área fundos grandemente aumentados, e da capacidade da sociedade de mobilizar e treinar exércitos de professores profissionalmente qualificados, dois progressos do séc. XX tiveram uma particular influência a nível internacional. O primeiro foi a série de planos de desenvolvimento centrados nas necessidades de educação e financiados massivamente por entidades como o Banco Mundial, agências governamentais, grandes fundações e vários ramos do sistema das Nações Unidas. O segundo foi a explosão da tecnologia da informação, a qual fez de todos os habitantes da terra potenciais beneficiários de todo o conhecimento da raça.

Este processo de reorganização estrutural a uma escala planetária foi animado e reforçado por uma profunda mudança de consciência. Populações inteiras viram-se abruptamente obrigadas a enfrentar os custos de hábitos mentais arreigados que geravam conflitos – e a fazê-lo mesmo debaixo da mira da censura mundial daquilo que outrora tinham sido consideradas atitudes e práticas aceitáveis. O efeito viria a estimular uma mudança revolucionária na forma como as pessoas se vêm umas às outras.

Ao longo da história, por exemplo, a experiência parecia demonstrar – e os ensinamentos religiosos confirmar – que as mulheres são de uma natureza essencialmente inferior aos homens. Da noite para o dia, no esquema histórico das coisas, esta concepção prevalecente bateu subitamente em retirada por todo o lado. Por muito longo e doloroso que seja o processo de fazer concretizar a declaração de Bahá’u’lláh em como mulheres e homens são, em todos os aspectos, iguais, o apoio intelectual e moral a qualquer ponto de vista oposto desintegra-se continuamente.

Uma outra característica da visão que a humanidade tinha de si própria ao longo dos anteriores milénios era a celebração de distinções étnicas que, em séculos recentes, endureceram em várias fantasias racistas. Com uma rapidez que, na perspectiva histórica, é de cortar a respiração, o séc. XX viu a unidade da raça estabelecer-se como um princípio orientador da ordem internacional. Hoje, os conflitos étnicos que continuam a ser a causa de devastação em muitas partes do mundo são vistos, não como traços característicos das relações entre povos diversos, mas como aberrações, que têm de ser trazidas a um controlo internacional eficaz.

Durante o longo período de infância da humanidade, também se partia do princípio – uma vez mais, com a concordância total da religião organizada – que a pobreza era uma característica duradoura e inevitável da ordem social. Agora, contudo, este pressuposto que moldou as prioridades de todos os sistemas económicos que o mundo conheceu, tem sido universalmente rejeitado. Pelo menos no plano teórico, os governos têm vindo a ser, por todo o lado, olhados essencialmente como provedores responsáveis por assegurar o bem-estar de todos os membros da sociedade.

Particularmente significativo – devido às suas íntimas relações com as raízes da motivação humana – foi o abrandar do preconceito religioso. Prefigurado no "Parlamento de Religiões", que atraiu imenso interesse no final do séc. XIX, o processo de diálogo e colaboração inter-religioso reforçou os efeitos da secularidade, ao minar as em tempos impenetráveis paredes da autoridade clerical. À face da transformação das concepções religiosas, que os últimos cem anos testemunharam, mesmo o actual eclodir de reacções fundamentalistas pode vir, em retrospectiva, a ser olhado como pouco mais do que acções desesperadas de defesa contra uma inevitável dissolução do controlo sectário. Nas palavras de Bahá’u’lláh, "Não pode haver dúvida alguma de que os povos do mundo, de qualquer raça ou religião, derivam a sua inspiração de uma só Fonte divina e são os súbditos de um único Deus." 6

Durante estas décadas críticas, a mente humana experimentava também mudanças fundamentais no modo como compreendia o universo físico. A primeira metade do século viu as teorias da relatividade e da mecânica quântica – ambas intimamente ligadas à natureza e funcionamento da luz – revolucionar o campo da física e alterar todo o curso do desenvolvimento científico. Tornou-se evidente que a física clássica só conseguia explicar fenómenos dentro de um âmbito limitado. Tinha-se, repentinamente, aberto uma nova porta para o estudo tanto dos ínfimos constituintes do universo como dos seus grandes sistemas cósmicos – uma mudança cujos efeitos ultrapassaram largamente o campo da física, abanando os fundamentos de uma mundividência que tinha dominado o pensamento científico durante séculos. Para sempre abolidas foram as imagens de um universo mecânico, governado como um relógio, e a presumida separação entre observador e observado, entre mente e matéria. Tendo como pano de fundo os estudos de longo alcance assim tornados possíveis, a ciência teórica começa agora a investigar a hipótese de que a finalidade e a inteligência sejam, de facto, intrínsecas à natureza e ao funcionamento do universo.

No despertar destas mudanças conceptuais, a humanidade entrou numa era em que a interacção entre as ciências físicas – física, química e biologia, juntamente com a ciência nascente da ecologia – abriu possibilidades de cortar a respiração para a melhoria da qualidade de vida. Os melhoramentos em áreas tão vitais de preocupação como a agricultura e a medicina tornaram-se fortemente evidentes, assim como outros originados pelo sucesso da identificação de novas fontes de energia. Simultaneamente, o novo campo da ciência de materiais começou a produzir uma riqueza de fontes especializadas, desconhecidas no início do século – plásticos, fibras ópticas e fibras carbónicas.

Tais progressos a nível da ciência e da técnica produziram efeitos recíprocos. Grãos de areia – o mais humilde e ostensivamente insignificante dos materiais – metamorfosearam-se em películas de silicone e vidro opticamente puro, tornando possível a criação de redes de comunicação mundiais. Isto, juntamente com a difusão de sistemas satélite cada vez mais sofisticados, começou a facilitar, a todas as pessoas, sem distinção, o acesso ao conhecimento acumulado de toda a raça humana. Torna-se evidente que as décadas imediatamente à nossa frente assistirão à integração das tecnologias ligadas ao telefone, à televisão e aos computadores num sistema único e unificado de comunicação e informação, cujos aparelhos de baixo custo estarão massivamente disponíveis. Seria difícil exagerar o impacto psicológico e social da substituição antecipada da mistura de sistemas monetários existentes – para muitos, o último reduto do orgulho nacionalista – por uma única moeda mundial, operando grandemente através de impulsos electrónicos.

De facto, o efeito unificador da revolução do séc. XX não é mais visível em qualquer outro lado do que nas implicações das mudanças que se concretizaram na vida científica e tecnológica. Ao nível mais óbvio, a raça humana está agora munida com os meios necessários para concretizar os objectivos visionários a que faz apelo uma consciência gradual e sistematicamente amadurecida. Vista mais cuidadosamente, esta capacitação é potencialmente acessível a todos os habitantes da terra, sem discriminação de raça, cultura ou nação. "Uma vida nova", Bahá’u’lláh viu profeticamente "está, nesta era, a vibrar em todos os povos da terra; contudo ninguém lhe descobriu a causa nem percebeu o motivo." 7 Hoje, passado mais de um século após o registo destas palavras, as implicações daquilo que desde então tem acontecido começam a tornar-se claras para mentes reflexivas por todo o mundo.


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III

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Apreciar as transformações trazidas pelo período histórico que agora acaba é não negar a escuridão envolvente, que faz realçar com nitidez os acontecimentos: o extermínio deliberado de milhões de seres humanos indefesos, a invenção e o uso de novas armas de destruição, capazes de anular populações inteiras, o despertar de ideologias que sufocaram a vida espiritual e intelectual de nações, o danificar do ambiente físico do planeta numa escala tão grande que pode levar séculos a sarar, e o prejuízo incalculavelmente maior infligido a gerações de crianças, ensinadas a acreditar que a violência, a indecência e o egoísmo são triunfos da liberdade pessoal. Estes são só os males mais óbvios de uma lista sem par na história, cujas lições a nossa era deixará para a educação das gerações flageladas que nos seguirão.

A escuridão, contudo, não é um fenómeno dotado de alguma forma de existência, muito menos de autonomia. Não extingue a luz, nem a diminui, mas assinala as áreas que a luz não atingiu ou iluminou inadequadamente. Deste modo, sem dúvida, será a civilização do séc. XX, avaliada pelos historiadores de uma época mais madura e desapaixonada. As ferocidades de natureza animal, que vingaram descontroladamente nestes anos críticos e que pareceram, por vezes, ameaçar a própria sobrevivência da sociedade, não impediram o regular despontar das potencialidades criativas que a consciência humana possui. Pelo contrário. Com o avançar do século, um número cada vez maior de pessoas despertou para o quão vazias eram as vassalagens, e infundados os medos, que os mantiveram cativos apenas alguns anos antes.

"Incomparável é este Dia", insiste Bahá’u’lláh, "pois ele é como olhos para os séculos e eras passadas, como uma luz para a escuridão dos tempos." 8 Nesta perspectiva, a questão fulcral não é a escuridão que atrasou ou obscureceu o progresso alcançado nos cem extraordinários anos que agora terminam. É antes uma questão de quanto mais sofrimento e desgraça que têm de ser experienciados pela nossa raça, antes que nós, de todo o coração, aceitemos a natureza espiritual que faz de nós indivíduos únicos, e arranjemos a coragem necessária para planear o nosso futuro à luz do que foi tão dolorosamente aprendido.


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IV

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A concepção do curso futuro da civilização estabelecida nos escritos de Bahá’u’lláh desafia muito daquilo que hoje se impõe ao nosso mundo como normativo e imutável. As descobertas realizadas durante o século da luz abriram a porta a uma nova espécie de mundo. Se a evolução social e intelectual está, de facto, a responder a uma inteligência moral inerente à existência, uma grande parte da teoria que determina as abordagens contemporâneas do poder de decisão está fatalmente fracassada. Se a consciência humana é essencialmente de natureza espiritual – como a vasta maioria das pessoas comuns sempre soube intuitivamente – as suas necessidades de desenvolvimento não podem ser compreendidas, nem servidas, através de uma interpretação da realidade que dogmaticamente insiste no contrário.

Nenhum aspecto da civilização contemporânea é mais directamente desafiado pela concepção de futuro de Bahá’u’lláh do que o culto prevalecente do individualismo, que se espalhou à maioria do mundo. Alimentado por forças culturais como a ideologia política, o elitismo académico e a economia de consumo, "a busca da felicidade" fez despertar um sentido agressivo e quase ilimitado de egocentrismo. As consequências morais foram corrosivas tanto para o indivíduo quanto para a sociedade – e devastadoras em termos de doença, dependência de drogas e outros males demasiado familiares deste fim de século. A tarefa de libertar a humanidade de um erro tão fundamental e tão difundido questionará alguns dos mais interiorizados pressupostos do séc. XX sobre o certo e o errado.

Quais são alguns desses pressupostos não averiguados? O mais óbvio é a convicção de que a unidade é um ideal distante, quase inatingível, a ser abordado só depois de uma variedade de conflitos políticos ter sido de algum modo resolvido, necessidades materiais de algum modo satisfeitas e injustiças de algum modo corrigidas. O que se verifica, declara Bahá’u’lláh, é o oposto. A principal doença que aflige a sociedade e gera os males que a tolhem, diz ele, é a desunião da raça humana, raça que se distingue pela sua capacidade de colaboração e cujo progresso até hoje dependeu da medida que a sua acção conjunta, em épocas e sociedades várias, conseguiu atingir. Agarrar-se à noção de que o conflito é um traço característico da natureza humana, em vez de um conjunto de hábitos e atitudes adquiridas, é impor a um novo século um erro que, mais do que qualquer outro factor, amputou tragicamente o passado da humanidade. "Vede o mundo", aconselhou Bahá’u’lláh a líderes mundiais eleitos, "como um corpo humano, o qual, embora inteiro e perfeito na altura da sua criação tem sido afligido, por causas várias, com graves males e doenças." 9

Intimamente relacionado com a questão da unidade está um segundo desafio moral que o século passado colocou com uma urgência cada vez mais crescente. Aos olhos de Deus, insiste Bahá’u’lláh, a justiça é a "mais amada de todas as coisas." 10 Capacita o indivíduo a ver a realidade com os seus próprios olhos e não com os de outros, e dota o poder de decisão colectivo de uma autoridade que só por si pode assegurar unidade de pensamento e de acção. Por mais gratificante que seja o sistema de ordem internacional que emergiu de experiências piloto do séc. XX, a sua influência duradoura dependerá da aceitação do princípio moral nele implícito. Se o corpo da humanidade é, de facto, uno e indivisível, então a autoridade exercida pelas instituições governamentais representa, essencialmente, uma provedoria. Cada pessoa vem ao mundo como fiel depositário do todo, e é esta faceta da existência humana que constitui os reais fundamentos dos direitos sociais, económicos e culturais que a Carta das Nações Unidas, bem como documentos a ela ligados, articulam. A justiça e a unidade têm efeitos recíprocos. "O objectivo da justiça", escreveu Bahá’u’lláh, "é fazer aparecer entre os homens a unidade. O oceano da divina sabedoria surge dentro desta palavra exaltada, enquanto que os livros do mundo não podem conter a sua significação mais íntima." 11

À medida que a sociedade se compromete – por muito hesitante e receosamente que o faça – com estes princípios e com princípios morais a eles ligados, o papel mais significativo que oferecerá ao indivíduo será o do serviço. Um dos paradoxos da vida humana é que o desenvolvimento do eu se concretiza, principalmente, através do compromisso com empreendimentos maiores, em que o eu – mesmo que apenas temporariamente – é esquecido. Numa época em que se abre às pessoas de todas as condições uma oportunidade de participar no moldar da própria ordem social, o ideal do serviço aos outros assume um sentido inteiramente novo. Enaltecer objectivos como a aquisição e a auto-afirmação enquanto propósito da vida é promover, essencialmente, o lado animal da natureza humana. Nem podem ainda as mensagens simplistas de salvação pessoal continuar a satisfazer as necessidades de gerações que constataram, com profunda certeza, que a verdadeira realização é tanto um assunto deste mundo como o é do próximo. "Cuidai zelosamente das necessidades da era em que viveis", é o conselho de Bahá’u’lláh "e concentrai as vossas deliberações nas suas exigências e requisitos." 12

Estas perspectivas têm profundas implicações na condução dos assuntos humanos. É óbvio, por exemplo, que, quaisquer que tenham sido os seus contributos passados, quanto mais tempo o estado-nação persistir como a influência dominante na determinação do destino da humanidade, tanto mais atrasado será o alcance da paz mundial, e tanto maior será o sofrimento infligido à população da terra. Na vida económica da humanidade, apesar das grandes bênçãos trazidas pela globalização, torna--se claro que este processo também criou concentrações de poder autocrático sem paralelo, que devem ser colocadas sob o controlo democrático internacional, sob pena de produzirem pobreza e desespero para milhões de pessoas. Do mesmo modo, os avanços históricos na tecnologia de informação e comunicação, que representa um meio tão potente de promover o desenvolvimento social e o aprofundamento da noção das pessoas quanto à sua humanidade comum, podem, com igual força, fazer dispersar e desbaratar impulsos vitais para o serviço deste mesmo processo.


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V

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Aquilo de que Bahá’u’lláh fala é de uma nova relação entre Deus e a humanidade, uma que se harmoniza com o alvorecer da maturidade da raça. A Realidade suprema, que criou e que sustém o universo, permanecerá, para sempre, inacessível à mente humana. A relação consciente da humanidade com ela, até ao ponto em que tal relação foi estabelecida, tem sido o resultado da influência dos Fundadores das grandes religiões: Moisés, Zoroastro, Buda, Jesus, Maomé e personagens mais recuadas, cujos nomes, na sua maioria, ficaram perdidos na memória dos tempos. Através da resposta a estes impulsos do Divino, os povos da terra desenvolveram, progressivamente, as capacidades espirituais, intelectuais e morais que contribuíram para civilizar o carácter humano. Este processo cumulativo, que durou milénios, atingiu agora um estádio característico de todos os pontos de viragem decisivos no processo evolutivo, quando possibilidades previamente impensáveis, de repente, emergiram: "Este é o Dia", afirma Bahá’u’lláh, "em que os mais excelentes favores de Deus manaram sobre os homens, o Dia em que a Sua graça suprema se infundiu em todas as coisas criadas." 13

Vista através dos olhos de Bahá’u’lláh, a história das tribos, dos povos e das nações chegou, efectivamente, ao fim. Aquilo que estamos a testemunhar é o início da história da humanidade, a história de uma raça humana consciente da sua própria unicidade. A este ponto de viragem no rumo da civilização, os seus escritos trazem uma redefinição da natureza e dos processos de civilização, e um reordenamento das suas prioridades. O seu objectivo é chamar-nos de volta para a consciência e responsabilidades espirituais.

Nada nos escritos de Bahá’u’lláh encoraja a ilusão de que as mudanças visionadas se processarão facilmente. Muito pelo contrário. Tal como os eventos do séc. XX já demonstraram, padrões de hábitos e atitudes que se enraizaram durante milhares de anos não são abandonados nem espontaneamente, nem simplesmente como resposta à acção educativa ou legislativa. Quer na vida do indivíduo, quer na da sociedade, a mudança profunda ocorre mais frequentemente em resposta a um intenso sofrimento e a dificuldades insustentáveis, que não podem ser ultrapassadas de outro modo. Uma tal grande provação, avisou Bahá’u’lláh, é necessária para fundir os diversos povos da terra num único.

As concepções espirituais e materialistas da natureza da realidade são inconciliáveis e orientam-se em direcções opostas. Com o iniciar do século, o rumo aberto pela segunda destas duas perspectivas opostas já conduziu uma humanidade infeliz muito para lá de um ponto limite, onde uma ilusão de racionalidade, já para não falar do bem-estar humano, em tempos se podia manter. Com cada dia que passa, multiplicam-se os sinais de que, por todo o lado, grandes números de pessoas estão a despertar para esta constatação.

Apesar de uma opinião em contrário largamente prevalecente, a raça humana não é uma tábua rasa, na qual agentes privilegiados dos assuntos humanos podem livremente inscrever os seus próprios desejos. As fontes do espírito brotam onde querem e como querem. Não serão indefinidamente suprimidas pelos detritos da sociedade contemporânea. Já não é necessária uma visão profética para nos darmos conta de que os primeiros anos do novo século assistirão ao libertar de energias e aspirações infinitamente mais potentes do que as rotinas, falsidades e dependências acumuladas, que durante tanto tempo bloquearam a sua expressão.

Por mais tumultuoso que seja, o período para o qual a humanidade se está a mudar abrirá a cada indivíduo, a cada instituição e a cada comunidade da terra, oportunidades sem precedente de participar no escrever do futuro do planeta. "Em breve", é a promessa confiante de Bahá’u’lláh, "será a presente ordem posta de lado e uma nova se estenderá em seu lugar." 14



Notas:

Observações do deputados Luís Gushkin e Rita Camata (sessão solene comemorativa do centenário da ascensão de Bahá’u’lláh da Câmara de deputados do Brasil)
Bahá’u’lláh, Epístolas de Bahá’u’lláh reveladas depois de Kitab-i-Aqdas
Bahá’u’lláh, Epístola ao Filho do Lobo
Bahá’u’lláh, Selecção de Escritos de Bahá’u’lláh, CXXXI
Abdu’l-Bahá, Promulgação da Paz Universal
Bahá’u’lláh, Selecção de Escritos de Bahá’u’lláh, CXI
Bahá’u’lláh, Selecção de Escritos de Bahá’u’lláh, XCVI
Bahá’u’lláh, citações de Shoghi Effendi , O Advento da Justiça Divina
Bahá’u’lláh, Selecção de Escritos de Bahá’u’lláh, CXX
Bahá’u’lláh, As Palavras Ocultas (nº2, do Árabe)
Bahá’u’lláh , Epístolas de Bahá’u’lláh reveladas depois de Kitab-i-Aqdas
Bahá’u’lláh, Selecção de Escritos de Bahá’u’lláh, CVI
Bahá’u’lláh, Selecção de Escritos de Bahá’u’lláh, IV
Bahá’u’lláh, Selecção de Escritos de Bahá’u’lláh, IV



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(Este documento foi elaborado pelo Gabinete de Informação Pública da Comunidade Internacional Bahá'í, Nova Iorque, em Fevereiro de 1999)


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